O canto da noite

"É noite; agora eleva-se mais a voz das fontes. E a minha alma é também uma fonte.
É noite; agora despertam todos os cantos dos amantes. E a minha alma é também um canto de amante.
Há qualquer coisa em mim insaciada, insaciável, que quer elevar a voz. Há em mim um anelo de amor que fala a linguagem do amor.
Eu sou luz. Ah! Se fosse noite! Mas é esta a minha soledade: ver-me rodeado de luz.
Ah! Se eu fosse sombrio e noturno! Como sorveria os seios da luz! E também vos bendiria a vós, estrelinhas que brilhais lá em cima como pirilampos! E seria venturoso com vossos mimos de luz.
Eu, porém, vivo de minha própria luz, absorvo em mim mesmo as chamas que de mim brotam...
...Eu não conheço o prazer de receber, e frequentemente tenho sonhado que o 'roubar' deve ser ainda maior deleite do que receber... Eles recebem de mim; mas acaso lhes tocarei eu sequer a alma? Entre dar e receber há um abismo. E é muito difícil transpor o menor abismo...
...Para onde foram as lágrimas dos meus olhos e a plumagem do meu coração? Ó soledade do meu coração? Ó soledade de todos que dão! Ó silêncio dos que brilham! Muitos sóis gravitam no espaço vazio; a sua luz fala tudo que é obscuro; só pra mim emudeceu.
Oh! É a inimizade da luz contra o luminoso! Desapiedada, segue o seu caminho. Profundamente injusto contra o luminoso, frio para com os sóis, assim caminha todo sol. Como uma tempestade voam os sóis por suas órbitas, é esse o seu caminho. Segue a sua vontade inexorável: é essa a sua frialdade.
Ai, só vós obscuros e noturnos, tirais o vosso calor do luminoso, só vóis bebeis o leite balsâmico dos úlberes da luz!
Ai, há gelo em torno de mim, gelo que queima as minhas mãos!
Tenho uma sede que suspira por vossa sede!
É noite! Ai, por que hei de eu ser luz? E sede do noturno! E soledade!
É noite! Como uma fonte, brota em mim o meu anelo, meu anelo de falar.
É noite: agora despertam todos os cantos dos namorados. E a minha alma é também um canto de namorado."
Assim cantou Zaratustra.
(Eu por Nietzsche)

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