No enterro da Dona Menina

De tanto eu falar da Dona Menina nesse velório, não prestei atenção que já é hora de enterrar. Já é hora de colocar o que morreu, que não pulsa mais debaixo da terra, para virar adubo, para renascer em flor. O desejo da Dona Menina é plantar um pé de rosas vermelhas em cima da cova dela, e deixar. Ela quer se transformar em flor, a Menina.
... E olha que susto!!!
O caixão caiu, os quatro homens que pegaram nas abas do caixão não suportaram o peso daquele corpo morto e tudo despencou, esses homens, os mesmos que nunca suportaram sua força, seus desejos, mas que criaram nela uma nova mulher, o que a fez, o pai, o que a descobriu, o primeiro, o que a redescobriu, o segundo e o que a nunca tocou, o eterno. Mas olha, olha rapaz, olha a tamanha surpresa, a Dona Menina se moveu, eita! Se levantou. Meu Deus!!! Mas, espera um pouco aí, quem levantou não é a mesma, não é aquela Menina vazia, de gênio forte, de voz macia... Espera mais um pouco, não é aquele olhar que eu via dia dia, não é o mesmo sorriso, não tem a leveza, a inocência, a juventude da Menina... O corpo pode ainda pulsar... Não, não é ressurreição, como a de Jesus Cristo, que venceu a morte depois de três dias... Não, não, não é reencarnação, porque está um espírito vivo, iluminado no mesmo corpo que ainda pouco jazia morto, não é um novo ressurgimento em uma nova missão. Não é Ela, não, não posso acreditar, aquela Dona Menina morreu, sim, morreu do coração, pois ele parou de bater, nem sei porque, mas ela morreu porque parou de bater o coração sofrido. Mas, e quem está ali? Quem é aquela que habita aquele corpo conhecido de todos nós, que a todo dia passava por mim, só que com uma alma diferente? Quem é?

Essa imagem de Uma força mover um corpo morto e o levantar, modificando todo o seu interior, fazendo brilhar uma luz que não existia... eu sou velho, meu filho, sou gagá, mas ainda tenho a lucidez de fazer o meu coração compreender o que meus olhos viram nesse momento, um renascimento. Aquela Menina que até aqui acompanhei, se foi, se entregou para outro mundo, se deu em missão e não mais retornará. Agora... Agora tem uma mulher em minha frente, ainda vazia, meio perdida, cambaleante, mas com uma força escomunal. Ela vai conseguir andar, ela vai dar o primeiro passo, ela vai... não, não caiu, ela conseguiu dar um passo para a sua nova jornada. 
E se aquela Dona Menina morreu, o que vejo agora em minha frente é uma Dona.


- Seja bem vinda ao mundo, Dona! E ela sorriu pra mim, um sorriso novo.

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